sábado, 21 de junho de 2008

Polícia do governo na república dos compadres

Polícia do estado, polícia do governo e estado policial

Reinaldo Azevedo

Só há uma coisa que prospera no país mais do que petróleo na camada do pré-sal: grandes operações da Polícia Federal. Não somei, mas nossas reservas de óleo já devem andar pela casa de uns 300 bilhões de barris... Assim como as operações da PF também se contam às dezenas. Quantas pessoas já foram presas, algemadas, com o estardalhaço característico, e quantas continuam presas? O primeiro número, não sei. O segundo, sei: nenhuma. Cada nova operação vai, digamos assim, repondo os detidos da operação anterior, que a Justiça manda soltar. E manda só porque é leniente e porque as leis, no país, protegem o corrupto? É o caso de analisar. Mas existe uma boa chance de haver abuso de poder nisso tudo. Ademais, é indisfarçável a paixão dessas operações por peixes miúdos. O que a PF sabe até hoje do mensalão? E do dossiê dos aloprados? Vamos com calma.

Não estou me opondo a que a PF faça o seu trabalho, não. Mas a sua paixão pelos holofotes — não a da instituição; refiro-me à do governo, que a chefia — é evidente. Lugar de ladrão é na cadeia. E um texto como este, sei disto, nasce antipático porque fica parecendo que caminha da contramão da moralidade. Não! Ele caminha na contramão do estado policial, o que é coisa bem distinta. Houvesse uma pouco mais de racionalidade e cuidado nas operações — e menos pirotecnia —, haveria pessoas presas, não é mesmo? E, reitero, não há. Daqui a pouco, os encarcerados desta última rodada estarão nas ruas. E sobra para a sociedade, e especialmente para o Congresso, a ameaça velada: “Cuidado! A PF está de olho em você!”

A formalidade legal foi preservada nesta mais recente operação, anote-se: todos os mandados de busca e apreensão foram expedidos pelo Supremo Tribunal Federal, incluindo os feitos no gabinete de dois deputados. Já os mandados de prisão foram expedidos pelo Juiz Hermes Gomes, da 2ª Vara de Governador Valadares, em Minas. Muito bem: se, de fato, as pessoas presas forem culpadas, que fiquem na cadeia e paguem por seus crimes. Mas continuarei a dar curso a meus desconfortos, chamando à memória um caso muito conhecido.

O caseiro pobre

Lembram-se do caseiro Francenildo? O Coaf (Conselho de Controle de Atividade Financeira) chegou a abrir um processo contra o rapaz por lavagem de dinheiro. Afinal, foram encontrados em sua conta R$ 25 mil considerados suspeitos — embora o Coaf se interesse por movimentações acima de R$ 100 mil. Vocês conhecem a história: era dinheiro enviado por seu pai biológico, e o sigilo de Francenildo foi ilegalmente quebrado — ninguém foi punido até agora. Pois bem: o Coaf capaz de detectar os R$ 25 mil de Francenildo não conseguiu perceber a lambança de mais de R$ 50 milhões do mensalão. Há algo de errado com um órgão que pega a mixaria do caseiro, mas deixa passar uma movimentação 1.999 vezes maior? Certamente. Mas o erro maior é na política.

Tarso Genro, ministro da Justiça, a quem a PF está subordinada, discursou hoje. Afirmou que a PF nada tem contra a política e os políticos. Segundo disse, ela apenas está atuando contra a corrupção. É mesmo? Seria demais lembrar ao ministro que os 40 do mensalão (agora 39, já que Silvinho Land Rover conseguiu se livrar), caso venham a se complicar, só terão contratempos porque a Procuradoria-Geral da República decidiu denunciá-los, e o STF acatou a denúncia? Qual foi a colaboração da Polícia Federal nesse caso? Uma polícia capaz de identificar uma falcatrua com cimento numa cidadezinha no interior de Minas Gerais não conseguiu chegar a nenhuma conclusão na investigação dos aloprados?

Neste exato momento, 16h50 do dia 20 de junho, operações literalmente bilionárias aguardam a mudança da lei para que possam ser legais — ou seja: são ilegais e foram patrocinadas pelo governo brasileiro. Refiro-me à venda da VarigLog (que já revendeu a Varig) a um fundo estrangeiro e à compra da Brasil Telecom pela Oi. No primeiro caso, a Anac deu um prazo para a empresa se regularizar — e já garantiu que a venda da Varig para a Gol, embora tenha nascido de uma ilegalidade, não será questionada. Entendo: não mexem com ilegalidades consumadas. No caso das empresas de telefonia, todos sabem, um banco oficial, o BNDES, patrocinou uma operação ilegal.

Nesses dois casos, notem, trato apenas da superfície do imbróglio, de sua face mais conhecida. Mas o noticiário policial que os antecede, como todos sabem, é gigantesco. E, vejam só, nada de Polícia Federal. Quando vejo na TV o ministro Tarso Genro, com fala pausada, escandindo sílabas, a se jactar de um governo que combate a corrupção, usando como evidência as operações da PF, sou obrigado a acender a luz vermelha.

A loura rica

Quero ver a Polícia Federal pegar alguns dos figurões da facção do CDC, dos Compadres dos Compadres. Para que fique provado que se trata mesmo de uma polícia do estado, não do governo. Por enquanto, ela parece demonstrar certa paixão por lambaris e por alguns “ricos & famosos” que não pertencem ao “Jegue Set” do poder. Quando prenderam Eliana Tranchesi, dona da Daslu, com a mobilização de um aparato, creio, só empregado para Fernandinho Beira-Mar, eu ainda estava no Primeira Leitura. Observei, então, o que observo agora: a Daslu sonegou? Tem de pagar, e a lei que vale para as Elianas tem de valer para os Dirceus, os Delúbios, os Teixeiras....

Nem sei como anda o processo contra a empresária, cujo empreendimento continuou a se expandir e a gerar empregos — mas ele tem de operar dentro da lei, é claro. Mas nao só a Daslu: também a VarigLog, a Brasil Telecom, a Oi e todo mundo. A lei tem de valer para os amigos do poder, para os inimigos do poder e para aqueles que são indiferentes ao poder. Talvez Eliana seja um “bom exemplo” para ser a primeira “rica & famosa” realmente punida pelo governo Lula com a cadeia. Se isso acontecer, pode até ser que se esteja fazendo justiça. A questão é saber se não se trata da justiça exemplar e episódica que esconde a injustiça generalizada. Se presa porque sonegou, a questão e saber por que só ela. Se é só ela, então não é porque sonegou, mas porque estará sendo usada como bode expiatório e “exultório” de uma particular justiça que, longe de ser cega, enxerga muito bem...

Qual é o centro deste texto, se é que ainda não ficou claro? Ou se punem todos ou não se pune ninguém? De jeito nenhum! Este é um texto contra a discriminação, contra os privilégios dispensados aos amigos do amigos, aos compadres dos compadres.

E aí poderei, sem susto, admirar o trabalho diligente da Polícia Federal. Como polícia do estado, não do governo.

Fonte:
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/