quinta-feira, 26 de julho de 2007

Em tempos de mediocridade política...

...é sempre bom lembrar dos grandes:

Moderado, radical e charmoso



Se fosse vivo, Ulysses Guimarães teria hoje 90 anos de idade. Em sua homenagem, segue artigo da cientista política Lucia Hippolito publicado no dia 14 de outubro de 1992 em O Globo por ocasião de sua morte.

"Político que a mulher chama por um nome e o eleitorado por outro não tem futuro, me disse uma vez o doutor Ulysses. Doutor Ulysses, assim mesmo, sem necessidade de sobrenome. O Brasil inteiro o conhece assim. O mais completo dos políticos brasileiros dos últimos 50 anos.

Moderado por formação, radical quando necessário, irônico, charmoso, bom papo, dono de um finíssimo senso de humor, grande parlamentar. Formado na mais fina escola de políticos que o país já produziu, o velho PSD de Amaral Peixoto, Juscelino, Tancredo e José Maria Alkmin, o doutor Ulysses não acreditava em políticos improvisados. “No PSD todos eram do ramo”, dizia ele. O doutor Ulysses certamente era.

Deputado estadual em 1947, desde 1950 estava na Câmara dos Deputados – 42 anos ininterruptos. Em 1955 integrou a Ala Moça do PSD, junto com Renato Archer, João Pacheco e Chaves, Cid Carvalho, Nestor Jost, Leoberto Leal, José Joffily, Vieira de Melo e Oliveira Brito. Este grupo viabilizou a campanha e o governo de Juscelino, atuando dentro da Câmara dos Deputados. O doutor Ulysses presidiu a Câmara entre 1956 e 1957, contribuindo decisivamente para a aprovação do programa do governo JK. O doutor Ulysses já era moderno naquela época.

Concentrou sua atividade política na Câmara dos Deputados. Como ele mesmo dizia, casou-se com a Câmara. Ministro no primeiro gabinete parlamentarista, não acreditava no parlamentarismo. Só recentemente veio a se render ao sistema, tornando-se um entusiasta do governo de gabinete.

Durante os anos da ditadura, o doutor Ulysses falava por todos nós, exilados fora e dentro do país, amordaçados pela censura e pelo medo. Só ele não tinha medo. Enfrentou os tanques com a mesma dignidade com que enfrentou os cães da polícia:

- "Respeitem o presidente da oposição!” Grande doutor Ulysses.

Em 74 aceitou a “anticandidatura” à presidência contra o candidato da ditadura, o general Geisel. Saiu pelo Brasil a pregar a redemocratização e a Constituinte. Com isso, impôs à ditadura uma fragorosa derrota, com a eleição de 16 senadores do MDB – um deles o atual presidente Itamar Franco. Foi o início do fim. Obra do doutor Ulysses.

Eu o conheci em Brasília, pelas mãos do senador Amaral Peixoto, quando preparava minha tese sobre o PSD. O doutor Ulysses me “adotou” e acompanhou todo o processo da tese, falou horas sobre o PSD, sobre a política, relembrou pessoas. Ficamos amigos desde então. Gostava de falar dos velhos tempos, mas não era saudosista. Acreditava no país, no fim da ditadura, num Brasil democrático.

Liderou a campanha pelas eleições diretas para presidente, lançando-se candidato numa entrevista em Nova York. Mas no final, o prêmio escapuliu-lhe das mãos; teve que ceder o lugar a Tancredo Neves, seu velho companheiro. “Muitas vezes o bom-bocado não é para quem o faz, mas para quem o come”, disse resignado o doutor Ulysses.

Na morte de Tancredo não faltou quem o tentasse seduzir para assumir a presidência da República. O doutor Ulysses não pestanejou e indicou o caminho constitucional: a posse do vice-presidente.

Perdeu uma presidência, mas ganhou duas. Presidente do PMDB, tornou-se presidente da Constituinte em 1987 e presidente da Câmara dos Deputados em 1988. Promulgou a nova Constituição, resultado de uma batalha na qual empenhou toda a sua experiência e vitalidade.

Levado a concorrer à presidência da República em 89 pelas indecisões de caciques paroquiais do PMDB, o doutor Ulysses perdeu as eleições. Vítima de ambições desmedidas – mas de fôlego curto dentro do próprio PMDB – o doutor Ulysses perdeu também a presidência do partido. Parecia caminhar para a aposentadoria, o “ócio com dignidade”.

Mas estourou a crise do governo Collor. E os políticos se dirigiram em romaria ao velho doutor Ulysses, que ressurgiu lépido, olhos azuis brilhando, e mais uma vez ajudou o país, aconselhando, ponderando, colocando ordem na casa. No meio do tumulto, enfrentou uma operação para extrair o apêndice, coisa complicada quando se tem 75 anos. Quando reapareceu, recuperado, diziam que ele não tinha extraído o apêndice, tinha trocado as pilhas, tão revigorado estava.

Conhecia o Congresso como ninguém. Na campanha das diretas, uma vez ele me disse que a emenda Dante de Oliveira não passaria na Câmara, porque conhecia a casa. Mas não desanimou. Sabia que a mobilização popular era importante para enterrar de vez o Colégio Eleitoral. Recentemente, me disse que só a mobilização das ruas conseguiria pressionar a Câmara a aprovar o afastamento de Collor. Estava certo mais uma vez.

Quando sentia crescer a radicalização na Câmara, o doutor Ulysses se tornava o mais radical de todos. Fixava, assim, os limites da radicalização. A última demonstração desta tática, muito típica de sua atuação, ocorreu quando sentiu que o plenário da Câmara queria desobedecer a uma eventual decisão do Supremo a favor do voto secreto na votação do impeachment de Collor. O doutor Ulysses lançou o brado de desobediência, transformou-se no mais radical dos radicais. Imediatamente os “bombeiros” se apresentaram, todos moderaram o tom, e o doutor Ulysses conseguiu acalmar os ânimos, fazendo com que todos confiassem no Supremo. Acertou de novo.

Respondeu aos insultos lançados por um presidente desesperado com uma frase curta e adequada: “Velho sim, velhaco não”. E foi, altaneiro, conduzir seu povo na batalha final pelo impeachment. Aplaudido de pé pelo plenário da Câmara – e pelo Brasil inteiro – ao proferir seu voto, o doutor Ulysses era a imagem da nação.

Almocei com ele em Brasília, uns domingos atrás. Fui tomar-lhe a bênção. Quando lhe agradeci por ter-se recuperado tão rápido da operação e ter regressado a tempo de comandar os acontecimentos, ele me olhou com aqueles olhos azuis irresistíveis e disse: “Milha filha” – sempre me chamou assim – “na minha idade, não tenho tempo para ficar doente. Ainda tenho muito o que fazer”.

E agora, o que faremos nós sem ele? Estamos diante da necessidade de prosseguir sem ter o doutor Ulysses para nos ajudar, nos mostrar o caminho, nos dar o exemplo. O doutor Ulysses foi um mágico. Fez amigos em todas as áreas, teve adversários cordiais, conspirou pela democracia, conversou até com poste para chegar a um entendimento a favor do Brasil. Hoje estamos órfãos e desnorteados. E o país está muito, mas muito menor.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Relaxe e Morra

O jornalista Reinaldo Azevedo, um dos maiores críticos do desgoverno Lula, comenta mais uma tragédia aérea causada pela incúria dessa gente que, no poder, só sabe relaxar e gozar.

NÃO PERGUNTE POR QUE OS CARIOCAS VAIRARAM LULA. ELES O FIZERAM POR TODOS NÓS
(Reinaldo Azevedo)

Pronto!

Já está em curso a rotina dos sacos pretos, em que são retirados os corpos.

O acidente da Gol, que matou 154 pessoas, completa 10 meses no dia 30. A crise aérea que inferniza a vida dos brasileiros está em seu nono mês. E dá à luz o óbvio: mortes.

Irresponsabilidade fazer uma afirmação como essa sem saber nem mesmo a causa do acidente? Não! Puro realismo! Já se sabe que o Airbus derrapou numa pista recém-reformada, que estava molhada. O mesmo aconteceu ontem. Os pilotos reclamavam dos reparos feitos pelo Infraero.

Reitero: 50 minutos depois do acidente, a Infraero não sabia o que havia acontecido; era incapaz de fornecer até mesmo o nº do vôo, como se um controlador, afinal de contas, não houvesse autorizado o pouso da aeronave.

É isso. Pegue um avião. Relaxe e morra.

Há algo de errado num setor que produz duas grande tragédias num intervalo de 10 meses. Desde que o caos aéreo tomou conta do Brasil, pergunte quantas pessoas foram substituídas, tente saber as medidas que foram efetivamente tomadas. Temos um governo tomado por patetas.

http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O tapa de Eliane Catanhêde

Este texto lapidar da jornalista Eliane Catanhêde é um (merecido) tapa na cara das classes média e alta brasileiras, que põem a culpa de todos os males no governo, mimam os seus filhos prolongando sua infância e adolescência, ao mesmo tempo em que acham que a lei é só para "os outros", ou seja, para os pobres.

"Um cara desses"

Quando os filhos são pequenos, chutam a canela da empregada, e os pais acham "natural", fingem que não vêem. Já maiores um pouco, comem o que querem, na hora em que querem, não falam nem bom-dia para o porteiro e desrespeitam a professora. Na adolescência, vão para o colégio mais caro, para o judô, para a natação, para o inglês e gastam o resto do tempo na praia e na internet. Resolvido.
Dos pais, ouvem sempre a mesma ladainha: o governo não presta, os políticos são todos ladrões, o mundo está cheio de vagabundos e vagabundas. "E quero os meus direitos!" Recolher o INSS da empregada, que é bom, não precisa.
É assim que os filhos, já adultos, saudáveis, em universidades, são capazes de jogar álcool e fósforo aceso num índio, pensando que era "só um mendigo", ou de espancar cruel e covardemente uma moça num ponto de ônibus, achando que era "só uma prostituta".
A perplexidade dos pais não é com a monstruosidade, mas com o fato de que seu anjinho está sujeito -em tese- às leis e às prisões como qualquer pessoa: "Prender, botar preso junto com outros bandidos?
Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?", indignou-se Ludovico Ramalho Bruno, pai de Rubens, 19.
Dá para apostar que ele votou contra o desarmamento, quer (no mínimo) "descer o pau em tudo quanto é bandido" e defende a redução da maioridade penal. Cadeia não é para o filho, que tem estudo e dinheiro, um futuro pela frente. É para o garoto do morro, pobre e magricela, que conseguir escapar dos tiroteios e roubar o tênis do filho.
Isso se resolve com o Estado sendo Estado, com justiça, humanidade e educação -não só com ensino para todos e professores mais bem treinados e mais bem pagos, mas também com a elementar compreensão de que "o problema", e os réus, não são os pobres. Ao contrário, eles são as grandes vítimas.

(Folha de S. Paulo, 29/06/07)

A agressividade do bando

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 5 de julho de 2007, o psicanalista Contardo Calligaris comenta a agressão contra uma doméstica praticada por um bando de garotos de classe média no Rio.

Quadrilhas de canalhas

Está com medo de tornar-se doméstica ou prostituta? Bata em pobres, índios e putas

EM POUCAS linhas, na Folha de sexta, dia 29 de junho, Eliane Cantanhêde descreveu perfeitamente o mundo no qual é possível que rapazes de classe média queimem um índio pensando que é "só um mendigo" ou espanquem uma mulher pensando que é "só uma prostituta". Provavelmente, não teria sido muito diferente se eles tivessem pensado que era só uma empregada doméstica.
É um mundo em que a permissividade é o melhor remédio contra a inevitável insegurança social. Nesse mundo, os pais fazem qualquer coisa para que seus rebentos acreditem gozar de um privilégio absoluto; esse é o jeito que os adultos encontram para acalmar sua própria insegurança, para se convencer de que eles mesmos gozam de privilégios garantidos e incontestáveis. Como escreveu Maria Rita Kehl no Mais! de domingo passado, nesse mundo, aos inseguros não basta ser cliente, é preciso que eles sejam clientes especiais.
Uma classe média insegura é o reservatório em que os fascismos sempre procuraram seus canalhas. Você está com medo de perder seu lugar e, de um dia para o outro, tornar-se índio, mendigo ou empregada doméstica? Pois é, pode bater neles e encontrará assim a confortável certeza de seu status. Aos inseguros em seu desejo sexual, aos mais apavorados com a idéia de sua impotência ou de sua "bichice", é proposto um remédio análogo. Você provará ser "macho" batendo em "veados" e prostitutas.
Há mais um detalhe: a inteligência humana tem limites, a estupidez não tem. Essa diferença aparece sobretudo no comportamento de grupo. Imaginemos que a gente possa dar um valor numérico à inteligência e à estupidez. E suponhamos que o valor médio seja dois. Pois bem, três sujeitos mediamente inteligentes, uma vez agrupados, terão inteligência seis. Com a estupidez, a coisa não funciona assim: a estupidez cresce exponencialmente. A soma de três estúpidos não é estupidez seis, mas estupidez oito (dois vezes dois, vezes dois). Quatro estúpidos: estupidez 16. Cinco: estupidez 32.
Curiosamente, essa regra vale até chegar, mais ou menos, a um grupo de dez. Aí a coisa tranca: a partir de dez, torna-se mais provável que haja alguém para discordar da boçalidade ambiente. Não porque, entre dez, haveria necessariamente um herói ou um sábio, mas porque, num grupo de dez, quem se opõe conta com a séria possibilidade de que, no grupo, haja ao menos um outro para se opor junto com ele.
Esse funcionamento, por sua vez, decai quando o grupo se torna massa. É difícil dizer a partir de quantos membros isso acontece, mas não é preciso que sejam muitos: um grupo de linchamento, por exemplo, pode desenvolver toda sua estupidez coletiva com 20 ou 30 membros.
Em alguns Estados dos EUA, é permitido dirigir a partir dos 16 anos. Mas, em muitos condados desses Estados, vige uma lei pela qual um jovem, até aos 21 anos, só pode dirigir se houver um adulto no carro. Pouco importa que esse adulto seja habilitado a se servir de um carro. O problema não é a perícia do motorista, mas o fato estatístico de que três, quatro ou cinco jovens num mesmo carro constituem um perigo para eles mesmos e para os outros: o grupo de "amigos" potencializa a estupidez de cada um, muito mais do que sua inteligência. Talvez seja por isso, aliás, que, para o legislador, a formação de quadrilha é um crime em si.
Qualquer pai de adolescente reza ou deveria rezar para que seu filho encontre rapidamente uma namorada e passe a sair na noite com ela, não com a turma dos amigos. Pois a turma é parente da gangue.
Como se sabe, o pai de um dos cinco jovens que, na madrugada do dia 23 de junho, na Barra da Tijuca, espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto, comentou, defendendo o filho: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?". É o desespero de quem sente seu privilégio ameaçado: como assim, tratar a gente como qualquer um?
Não éramos "clientes especiais"?
Mas as frases revelam também a distância entre o filho que o pai conhece em casa (o filho que teria "caráter") e o filho que se revela na ação do grupinho (esse filho não tem "caráter" algum).
O que precede poderia ser entendido como uma atenuante, tipo: eles agiram assim não por serem canalhas, mas por estarem em grupo. Ora, cuidado: o grupo não produz, ele REVELA os canalhas.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0507200729.htm

A importância estratégica da universidade

Entre quatro paredes

Conhecimento dirigido à imediatez prática tolhe as universidades e deixa pesquisadores sem escolha

(MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO)

O conhecimento é assunto de Estado e não deve prestar-se a capciosas tentativas de privatização indigente. Intromissões do atual governo tentam jogar as universidades públicas na grande bacia das almas de transferência do que é estatal para o domínio particular: passo decisivo foi submetê-las a uma repartição gestora de todo o "sistema de ensino superior paulista".
Justifica-se tal ato repisando que as universidades públicas sempre estiveram submetidas a alguma secretaria.
A memória brasileira é curta, mas, aqui, curtas são as pernas da mentira. A USP tornou-se autarquia em l944, com dotação orçamentária global e "poder de decisão e distribuição dos recursos recebidos, mediante elaboração de orçamento próprio".
Nesse passo, o professor Miguel Reale, membro do Conselho Administrativo do Estado, convenceu-se de "que a autonomia seria ilusória se o reitor continuasse a despachar com o secretário de Educação" e apresentou emenda "em virtude da qual todas as funções daquele secretário, relativas ao ensino superior, passavam a ser exercidas pelo reitor da USP, disposição esta que, em um primeiro momento, se estendeu aos atos normativos das novas universidades criadas". Com decisão unânime, "o reitor adquiriu status de secretário de Estado, passando a despachar semanalmente com o chefe do Executivo paulista, praxe louvável que, se não me engano, só foi respeitada até o governo de Laudo Natel" ("Minhas Memórias da USP", disponível no site www.scielo.br).
Por muito tempo, assim, os reitores responderam diretamente ao governador. Por que o Cruesp [Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo] não poderá fazê-lo?
O governo Serra desatina: usa meios burocráticos, ditos racionalizadores, para abolir uma função pública essencial à lógica e razão do Estado moderno: o monopólio do saber.
Mantido pela igreja, o dogma e a censura teológico-política foram rompidos, em secular e duro combate, pela crítica do conhecimento, reabrindo a dúvida e reinstaurando a cultura laica, de domínio público.
Nessa luta, firmou-se o lema de Francis Bacon: "Knowledge and power meet in one" [traduzido correntemente por "conhecimento é poder"]. Subjaz a esse vínculo uma das condições básicas ao trabalho científico: a capacidade de afrontar o dogmatismo e o estereótipo, mobilizando tradições de saber aliadas a descobertas inovadoras, mantendo o conhecimento à altura de seu tempo. Ciência-técnica-política são as suas vigas mestras.

Palavras proféticas
Bacon acata o saber ligado à prática, mas aponta, como barreira ao progresso do conhecimento, o descaso pelas ciências básicas, únicas capazes de nutrir a técnica, teses retomadas por Hobbes.
Hoje, quando as especializações se ampliam e o mercado invade a produção científica, com urgência de lucros, fragmentação da pesquisa e declínio da base acadêmica, o programa proposto por Bacon não poderia ser mais cortante.
Sua restauração do saber conjuga produção científica e poder público em instituições definidas por formas e conteúdos inerentes à atividade científica.
Desatento à pesquisa, o Estado, nem mesmo para suas próprias tarefas, reúne pessoas capazes: seu descaso gera "um deserto de homens". Palavras proféticas: hoje escândalos se sucedem na República ao passo que mal aparecem estadistas empenhados em áreas do saber.
O conhecimento dirigido à imediatez prática (utilidade social direta, subsídios a empresas, serviço ao mercado, adestramento empregatício etc.) tolhe as universidades, definindo linhas de investigação e critérios de "excelência", impondo limites de tempo e deixando os pesquisadores sem escolha: ou ajustam-se ou excluem-se.
No mundo regido pela ciência e pela técnica, dominado por centros hegemônicos, o trabalho da teoria, o uso prudente dos conhecimentos, a prática desvinculada da imediatez são os meios capazes de enfrentar a violência com que os interesses lucrativos e a cobiça política estilhaçam a sociedade e a cultura.
Nem chegamos a imaginar o sentido atual do maldito conceito de imperialismo. Investigações sociopsíquicas para fins bélicos, impulsionadas na Segunda Guerra, converteram-se em procedimentos além da ficção científica (como abordagens matemáticas e computacionais para simular processos biológicos complexos ou "próteses" -pequenos chips- para corrigir danos ou dirigir cérebros normais), em experimentos que ignoram o Código de Nuremberg [criado em 1947 pelo tribunal internacional encarregado de julgar os nazistas].
Trilhões de dólares são investidos pelo Pentágono, a Casa Branca e as agências de segurança na condução dessas pesquisas (ver J.D. Moreno, "Mind Wars").
O próprio Bacon poderia temê-las. Em sua utopia, discute quais invenções, experiências e descobertas devem ser publicadas ou escondidas, sob juras de segredo. Só algumas são reveladas ao Estado.
Sobre os critérios dessa escolha, nada é esclarecido, mas o lorde chanceler devia calcular o que dizia, partícipe que foi dos dois lados: do Estado repressor e da ciência em luta contra a censura.
Todo aquele poderio não se estriba apenas em riqueza material: um forte legado do saber renascentista, em especial seu viso puritano, foi transposto para a Nova Inglaterra e alimentado em Harvard, logo após a chegada dos peregrinos e, depois, em Yale.
Quase 400 anos de vida universitária independente, contra o obscurantismo na colônia portuguesa. O tanto que conseguimos, em menos de um século, não merece ser destruído.

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO é professora titular de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas e autora de Homens Livres na Ordem Escravocrata (ed. Unesp).