segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Resumo 19 – Democracia

IV – Estado e Governo

1. Regimes de Governo:

a) Democracia


“Nós aqui presentes solenemente afirmamos que esses homens não morreram em vão, que esta nação, com a graça de Deus, verá o nascimento de uma nova Liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra” (A. Lincoln, Discurso em Gettysburg, 1863).



Classificações. Há muita confusão quando se fala de regimes, formas e sistemas de governo. Utilizaremos neste curso a classificação mais atual e que está de acordo com a Constituição vigente:
regimes de governo: democracia e autocracia
formas de governo: monarquia e república
sistemas de governo: parlamentarismo e presidencialismo

Regimes de Governo – Introdução. O poder soberano do Estado é exercido através do governo. Os regimes de governo são democracia e autocracia (também conhecida como ditadura, despotismo, totalitarismo etc.), conforme o governo seja mais ou menos autoritário, tenha mais ou menos participação popular e garanta mais ou menos os direitos fundamentais. Neste e nos próximos capítulos, estudaremos a democracia e seus institutos. Em seguida, veremos a autocracia.


Democracia.
• Origem do termo: do grego demos (povo), kratos (poder)
• Segundo Lincoln, democracia é o governo do povo (o poder pertence ao povo), pelo povo (é exercido pelo povo) para o povo (em benefício do povo)


Classificação de Aristóteles. Aristóteles (384-322 a.C.) classificou os governos segundo o número de governantes e a modo de exercício do poder. Para ele, as formas boas de governo eram exercidas em benefício do bem comum, e as formas más ou degeneradas seriam as exercidas para favorecer apenas aqueles que governam.
• governo de um: monarquia (forma boa) e tirania (forma má, exercida no interesse do tirano)
• governo de poucos: aristocracia (governo dos virtuosos, forma boa) e oligarquia (forma má, voltada para o bem dos poucos que governam)
• governo de muitos: politéia (“constituição”, forma boa, exercida no sentido do bem comum) e democracia (forma degenerada, dominada pelos demagogos e exercida no interesse dos pobres contra os ricos).

Observa-se que, para Aristóteles, a democracia era uma forma degenerada de governo, porque ele se baseava no que ocorria em Atenas na época, mas esse sentido mudou com o tempo e a democracia passou a ser considerada o melhor tipo de governo.

Democracia Antiga. Democracia era o regime de governo das cidades gregas, especialmente Atenas, por volta de V e IV a. C. Possuía as seguintes características básicas:
• exercício direto do poder pelo povo (decisões políticas tomadas em assembléias na praça pública)
• alto grau de participação dos cidadãos
• conceito restrito de cidadania (exclusão das mulheres, escravos etc.)
• liberdade política x limitação da liberdade individual (liberdade dos antigos x liberdade dos modernos)
isagoria (igual direito à palavra nas assembléias), isonomia (igualdade perante a lei) e isotimia (igualdade no acesso aos cargos públicos)
• cargos públicos preenchidos preferencialmente por sorteio e exercidos por tempo limitado

Discurso de Péricles

"Nosso regime político é a democracia e assim se chama porque busca a utilidade do maior número e não a vantagem de alguns. Todos somos iguais perante a lei, e quando a cidade outorga honraria o faz para recompensar virtudes e não para consagrar privilégios.

O governo favorece a maioria em vez de poucos – por isso é chamado de democracia. Se consultarmos a lei, veremos que ela garante justiça igual para todos em suas diferenças; quanto à condição social, o avanço na vida pública depende da reputação de capacidade. As questões de classe não têm permissão de interferir no mérito, tampouco a pobreza constitui um empecilho: se um homem está apto a servir ao estado, não será tolhido pela obscuridade da sua condição.

Cultivamos o refinamento sem extravagância, e o conhecimento sem afetação. Empregamos a riqueza mais para o uso do que para a exibição e situamos a desgraça real da pobreza não no reconhecimento do fato, mas na recusa de combatê-la.

Diferentemente de qualquer outra comunidade, nós, atenienses, consideramos aquele que não participa de seus deveres cívicos não como desprovido de ambição, mas sim como inútil.

Em vez de considerarmos a discussão como uma pedra no caminho da ação, a consideramos como uma preliminar indispensável de qualquer ação sábia. Em resumo, afirmo que, como cidade, somos a escola de toda a Grécia..."
(Trechos do discurso em homenagem aos atenienses mortos na guerra do Peloponeso, 430 a. C.)

Democracia Moderna. Depois do apogeu na Grécia, a democracia foi praticamente esquecida e só voltou a ser lembrada com o surgimento do Estado Moderno, tendo como objetivos a luta contra o absolutismo e a afirmação dos direitos naturais (vida, liberdade, igualdade etc.). A democracia moderna se diferencia da antiga pela extensão da cidadania (busca do sufrágio universal) e pela limitação da participação direta (democracia representativa)

Histórico. A democracia ressurge no Estado Moderno como conseqüência das revoluções burguesas (Inglaterra, EUA, França) e do constitucionalismo, sob a influência de filósofos jusnaturalistas como Locke, Montesquieu e Rousseau.

Revolução Inglesa (1689). Sob a influência de Locke, editou o Bill of Rights, garantindo os direitos naturais, limitando o poder da monarquia e afirmando o Legislativo, composto de representantes do povo, como o poder supremo, a quem cabe estabelecer as leis, segundo a vontade da maioria.

Revolução Americana (1776). Aplicou a lição de Locke pela qual é dever do governo respeitar os direitos naturais, sem o que o povo tem direito à rebelião. De Montesquieu, aplicou o princípio da separação de poderes como forma de limitação do poder, estabelecendo os poderes legislativo, executivo e judiciário como harmônicos e independentes, sem que um prevaleça sobre o outro. Devido à inexistência da nobreza, teve maior participação popular.

Revolução Francesa (1789). Derrubou a monarquia absolutista aplicando a teoria democrática de Rousseau de que a soberania pertence ao povo (nação) e a lei deve ser expressão da vontade geral. Consagrou os direitos naturais e aplicou a teoria da separação de poderes sem os mecanismos de freios e contrapesos previstos nos EUA. Teve um caráter mais universalista do que as outras revoluções, espalhando-se por Europa e Américas.

“A Democracia na América”. Este é o título de um livro clássico do filósofo francês Alexis de Tocqueville, que, em vista aos EUA em 1831, ficou impressionado com o funcionamento da democracia norte-americana, caracterizada pela intensa participação dos cidadãos, pela igualdade de oportunidades e pela prevalência da soberania popular mediante eleições livres. Para ele, a democracia política, social e econômica ali vigente era o futuro da humanidade. Ficou famosa sua observação de que os males da democracia se resolvem com mais democracia, nunca com menos.

Século XIX. No século XIX prevaleceu a democracia liberal, com a garantia das liberdades públicas e da igualdade apenas formal (perante a lei). Exceto nos EUA, a participação popular, limitada à eleição de representantes, era muito pequena, devido às limitações do sufrágio em razão da renda (voto censitário) e da escolaridade (a maioria da população era de analfabetos) e do sexo (proibição do sufrágio feminino).

Século XX. O início do século XX foi marcado pelo desprestígio da democracia liberal, que sofria ataques tanto dos socialistas como dos fascistas. Os socialistas criticavam a democracia formal, que não garantia a participação popular e a igualdade real. Os fascistas criticavam a fraqueza dos governos democráticos para tomar decisões essenciais ao Estado. Ambos pregavam as virtudes da ditadura, seja do proletariado, seja do líder carismático (duce ou führer).

Pós-guerra. A democracia só recupera seu prestígio após o fim da II Guerra Mundial, mas agora com a exigência de ampla participação popular (sufrágio universal) e garantia dos direitos civis, políticos e sociais. Atualmente, nenhum Estado, mesmo os totalitários como Coréia do Norte, Cuba e Irã, admite ser antidemocrático.

Como identificar uma democracia?
Segundo Dallari, a democracia atual tem os seguintes requisitos:
supremacia da vontade popular: eleições livres e periódicas, sufrágio universal, prestação de contas, transparência, outras formas de participação popular como plebiscito, referendo, iniciativa popular, orçamento participativo etc.
preservação da liberdade: limitação do poder, liberdade de imprensa e outras liberdades públicas, oposição livre, respeito às minorias etc.
igualdade de direitos: garantia de acesso livre e igualitário aos direitos políticos, civis e sociais.

Democracia como técnica. Segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), a democracia é ao mesmo tempo uma técnica e um valor. Como técnica, ou seja, sob o ponto de vista formal, ela é definida como “regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”. Bobbio ensina que “apenas onde essas regras são respeitadas o adversário não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar”. Sob esse ponto de vista, a vontade da maioria deve prevalecer, exceto quando não há respeito às regras do jogo, ou seja, não se pode usar a democracia para destruir a democracia.

Democracia como valor. Segundo Bobbio, a democracia é substancialmente um valor, isto é, um conjunto de fins (e não apenas de meios), dentre os quais sobressai a finalidade da igualdade jurídica, social e econômica.

“Democracia não é só a escolha por votos, mas é o casal ter um diálogo bom e respeitoso, o patrão ouvir os empregados e aceitar suas sugestões, o professor ou o pai escutar o aluno ou o filho e não ter vergonha de pedir desculpas. Democracia, aqui, significa um concentrado de atitudes, em que se incluem a conversa limpa, honesta e sincera, a renúncia a ser o dono da verdade e, finalmente, as boas maneiras. Ser educado pode ser um traço essencial da democracia, porque é um modo de dizer que o outro vale tanto quanto nós” (Renato Janine Ribeiro)

A democracia é possível?
• para Rousseau, não existe e talvez nunca existirá democracia perfeita, a não ser para “um povo de deuses”
• segundo Bobbio, existem regimes menos e mais democráticos. É um ideal a ser sempre buscado, até porque ao contrário do despotismo, que não muda, estar sempre em transformação é da natureza da democracia.

A democracia é o melhor regime?

"Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos" (Churchill)

“Quando me perguntam se uma nação está madura para ser livre, respondo: existe um homem maduro para ser déspota?” (Lord John Russel)

“O despotismo se apresenta freqüentemente como o reparador de todos os males sofridos; é o apoio da razão, o sustentáculo dos oprimidos e o instaurador da ordem. Os povos adormecem no seio da prosperidade momentânea que ele propicia; e, quando despertam, estão na miséria. A liberdade, ao contrário, comumente nasce no meio das tempestades, estabelece-se penosamente entre as discórdias civis e não é senão quando já está velha que se pode conhecer seus benefícios” (A. Tocqueville).

“Em matéria de desonestidade, a diferença entre o regime democrático e a ditadura é a mesma que separa a ferida que corrói a carne por fora e o tumor invisível que corrói por dentro. As feridas democráticas curam-se pelo sol da publicidade, com o cautério da opinião pública livre; ao passo que os cânceres profundos da ditadura apodrecem internamente o corpo social e são por isso mesmo muito mais graves” (Clemenceau)

“Nenhuma guerra explodiu até agora entre Estados dirigidos por regimes democráticos. O que não quer dizer que os Estados democráticos não tenham feito guerras, mas apenas que jamais fizeram entre si” (Norberto Bobbio)

Bibliografia
Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo IV, itens 75 a 78.
Leituras complementares: M. Y. Finley, Democracia antiga e moderna. Norberto Bobbio, Dicionário de Política, verbete “democracia” e O futuro da democracia – uma defesa das regras do jogo. Renato Janine Ribeiro, A democracia (Coleção Folha Explica, ed. Publifolha).

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