quarta-feira, 6 de abril de 2011

Resumo 11 - Elementos do Estado - Soberania

II – Do Estado (continuação)

3. Elementos do Estado Moderno (continuação)

3.3. Poder Soberano



“O direito e o poder são as duas faces de uma mesma moeda: só o poder pode criar o direito e só o direito pode limitar o poder” (Norberto Bobbio)


Introdução. Como toda sociedade, o Estado tem como um dos seus elementos essenciais o poder. Porém, o poder do Estado tem características exclusivas que o diferem do poder das demais sociedades, sendo a principal delas a soberania. Por isso, segundo a maioria dos autores, poder soberano, ou simplesmente soberania, é elemento essencial do Estado, não havendo Estado sem poder soberano.

Soberania. Soberania é um dos conceitos mais importantes e polêmicos da Ciência Política e da Teoria do Estado. A palavra vem do latim super omnia – superanus (superior a todos). Para a maioria dos autores, ela é uma característica essencial e exclusiva do poder do Estado, por isso trataremos de poder e soberania no mesmo capítulo.

O Poder do Estado. Segundo Burdeau, o poder do Estado é a força da idéia representada pelos objetivos fundamentais de uma sociedade (bem comum). Para esse autor, os homens inventaram o Estado para não obedeceram aos homens. O Estado é uma forma de poder que enobrece a obediência, pois a relação entre governantes e governados deixa de ser baseada na força ou na vontade arbitrária do governante, fundamentando-se no ideal do bem comum. É um poder abstrato, pois independe das pessoas que o exercem transitoriamente.

Espécies de Poderes. Todas as sociedades são dotadas de poder, mas o poder do Estado tem características próprias e exclusivas. Segundo Jellinek, há dois tipos poderes: dominante (do Estado) e não-dominante (outras sociedades). O poder dominante dispõe de força legal para obrigar, com seus próprios meios, à obediência de suas ordens (coação), o que não ocorre com os poderes não-dominantes. Se uma sociedade particular pode usar a força, como, por exemplo, para expulsar alguém de um recinto, ela o faz porque está autorizada pela lei do Estado. Um exemplo de poder não-dominante é a Igreja, que pode ditar regras a seus adeptos, mas não pode obrigá-los, pela força, a cumpri-las. Isso não ocorria na Idade Média, em que a Igreja e os senhores feudais tinham poder dominante sobre seus súditos. E em Roma, o pater famílias tinha poder dominante sobre a família e os agregados.

Poder Dominante. O poder dominante possui as seguintes características: é originário, porque não é criado por nenhum outro poder e dá sustentação a todos os demais poderes; é irresistível, porque dotado de coação legal (regulada e limitada pelo Direito), da qual ninguém pode se subtrair. O cidadão de um Estado não pode, por vontade própria, deixar de sê-lo, a menos que se submeta a outro Estado.

A Soberania. Segundo a maioria dos autores, a soberania é uma característica essencial do poder do Estado de tipo moderno. Só o poder do Estado é soberano e não há Estado sem poder soberano. É a qualidade que torna o poder do Estado supremo internamente e igual e independente em relação aos demais Estados na esfera internacional.

Histórico. O conceito de soberania não era conhecido na Antiguidade nem na Idade Média, pois, segundo Jellinek, faltava a noção da oposição entre o poder do Estado e os demais poderes, tanto interna como externamente. A noção de soberania surge com o Estado Moderno, como conseqüência da afirmação do poder exclusivo e supremo do monarca sobre o território e o povo do Estado, em oposição aos senhores feudais, à Igreja, ao imperador e às cidades livres, ao mesmo tempo em que era reconhecido igual poder aos demais Estados.

A teoria de Jean Bodin (1530-1596). O primeiro teórico a tratar do assunto foi Jean Bodin, em sua obra Os seis livros da República (1576). Baseando-se na realidade francesa da época, para Bodin a soberania é o poder absoluto e perpétuo numa República (para ele, sinônimo de Estado). Esse poder pertence ao rei, que é legibus solutus (imune à lei) e superiorem non recognoscens (não reconhece poderes superiores). As únicas limitações ao poder soberano seriam as leis divinas e naturais, as quais ninguém pode contrariar. É um poder perpétuo, no sentido de que não é exercido por prazo certo, sendo transmitido hereditariamente. Essa teoria serviu ao absolutismo monárquico, em que o rei era o soberano e concentrava em suas mãos os poderes legislativo, executivo e judiciário.

A teoria de Rousseau. Outro autor importante a tratar da soberania foi Rousseau (1712-1778). Para ele, a soberania pertence ao povo e não ao rei, e deve expressar a vontade geral. Ela é una (apenas uma soberania vigora num Estado), indivisível (não se divide, admitindo-se apenas a divisão de funções), inalienável (não pode ser delegada pelo povo), imprescritível (não tem prazo de duração). É também absoluta (suprema), mas não deve impor obrigações inúteis aos cidadãos e tratar a todos com igualdade.

Fundamento da soberania. A concepção de soberania evoluiu de uma base exclusivamente política (força, vontade) para uma justificativa jurídica (baseada no Direito), culminando com uma síntese dos dois fundamentos, sendo hoje considerada pela maioria dos estudiosos como um conceito ao mesmo tempo político e jurídico.

Concepção Política de Soberania. Segundo uma concepção puramente política, poder é força, dominação, importando que produza resultados (eficácia). Para Jhering, a força produz o Direito, e, segundo Weber, soberano é aquele que possui o monopólio do uso legítimo da força. Segundo essa concepção, soberania é o poder incontrastável de mando, ou seja, o poder de querer coercitivamente e de fixar competências (preocupação com a plena eficácia do poder).

Concepção jurídica de soberania. Segundo uma concepção puramente jurídica (normativista, positivista), o poder é criado pelo Direito. O grande jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973), na sua Teoria Pura do Direito, sustenta que a ordem jurídica (direito posto, positivo) é escalonada como uma pirâmide em que as normas superiores são o fundamento de validade das inferiores. O ápice dessa pirâmide é a norma suprema (Constituição). É ela que fornece fundamento de validade às normas inferiores, como leis e decretos, até as sentenças judiciais e os contratos, que são normas particulares (relativas a casos concretos). O fundamento de validade desse sistema seria uma norma hipotética, que não é posta, mas simplesmente suposta, ou seja, é um pressuposto lógico para a construção do sistema e inexistente no campo dos fatos, representado pela obrigação de obedecer a tudo que está na Constituição. Este seria o ponto fraco da doutrina de Kelsen, pois o fundamento da soberania fica sem explicação fática. Portanto, segundo a concepção jurídica, soberania é o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, ou seja, poder soberano é aquele que dá a última palavra sobre qual é a norma válida num Estado (preocupação com a eficácia do Direito).

Concepção culturalista de soberania. Observando que tanto a concepção política como a jurídica de soberania são parciais e não explicam satisfatoriamente o fenômeno, o grande jurista brasileiro Miguel Reale (1910-2006), faz uma síntese das duas concepções, expondo a sua concepção culturalista de soberania. Segundo a Teoria Tridimensional do Direito, de autoria de Reale, o Estado, assim como o Direito, é ao mesmo tempo um fenômeno social (fato), político (valor) e jurídico (norma). O poder é substancialmente político, mas não há organização social sem direito (ubi societas, ibi jus; ubi jus, ibi societas). O que há são graus de juridicidade: a presença do Direito vai de um mínimo (a força ordenadamente exercida) até um máximo (força empregada exclusivamente como um meio de realização do Direito), conforme o grau de evolução cultural de uma sociedade. Segundo essa concepção culturalista ou jurídico-política de soberania, a sociedade, para organizar-se, necessita do poder, mas esse poder é sempre exercido segundo uma norma, e, à medida que a sociedade evolui, o poder vai sendo cada vez mais exercido conforme os valores sociais, expressados pelo Direito. Soberania, assim, na visão de Reale, é a capacidade de um povo de organizar-se juridicamente e de fazer valer, dentro de seu território, a universalidade de suas decisões, nos limites dos fins éticos da convivência humana.

Justificação da soberania. Da mesma forma que o poder social em geral, a soberania possui duas linhas doutrinárias de justificação: a doutrina teocrática, isto é, o poder vem de Deus, sendo transmitido ao monarca ou ao povo; e a doutrina democrática, pela qual a fonte do poder é o próprio povo, sendo por ele exercido diretamente ou por meio de representantes (doutrina predominante atualmente).

Titular da Soberania. Para Bodin, o titular da soberania era o monarca (absolutismo). Para Rousseau, é o povo (democracia). Para o Abade de Sieyés e outros teóricos da Revolução Francesa, é a nação. Segundo Jellinek e outros teóricos da doutrina alemã da personalidade jurídica do Estado, o titular da soberania é o próprio Estado. Esta é a teoria mais aceita atualmente, sem excluir o povo como fonte do poder.

Objeto e significação. Internamente, ou seja, em relação ao povo do Estado e quem se encontre em seu território, a soberania é o poder supremo. Esse poder, porém, não é absoluto, pois deve ser limitado pelo Direito e, caso haja violações graves dos direitos humanos, pode haver intervenção externa, desde que autorizada pela ONU. Externamente, ou seja, em relação aos outros Estados, a soberania significa igualdade e independência de um Estado em relação aos demais. Embora existam Estados fortes e fracos, não existem Estados mais ou menos soberanos. Um Estado pode reagir a uma agressão de outro Estado, mas não pode violar a soberania de outro sem autorização da ONU, sob pena de sofrer sanções internacionais.

Relativização da Soberania. Segundo o jurista italiano contemporâneo Luigi Farrajoli, atualmente a soberania é relativizada internamente pelo Estado de Direito, pela separação de Poderes, pelos grupos de pressão etc., embora ainda seja o grau máximo de poder. Externamente, ela é atenuada pela ONU e por tratados internacionais, blocos econômicos etc. Existe ainda a teoria da negação da soberania: ela não existe de fato, o que existe é a crença na soberania (Duguit).

Conclusões. Soberania não é o poder, mas sim uma qualidade essencial e exclusiva do poder do Estado Moderno. É expressão do poder máximo, mas não do poder absoluto, pois tem regras e limites para o seu exercício, seja interna, seja externamente. Seu titular é o Estado, mas sua fonte é o povo. É elemento essencial do Estado, pois sem soberania não pode existir Estado.

O caso “Altalena”. Este caso, ocorrido em junho de 1948, ilustra bem o momento em que um poder soberano se impõe num Estado recém-formado. Desde o início do século XX, judeus e árabes lutaram por espaço na região da Palestina, que estava sob autoridade da Inglaterra. Havia entre os judeus dois grupos armados principais, a Haganá, que era uma força defensiva, e o Irgun, que atuava de forma agressiva, inclusive com atentados terroristas. Em novembro de 1947, a ONU determinou a partilha da Palestina, com a criação de dois Estados, um judeu e outro árabe. Os judeus aceitaram a partilha, mas os árabes não, o que acirrou a luta entre eles. Em maio de 1948 as forças Inglesas deixaram a Palestina e os judeus proclamaram a independência do Estado de Israel, que foi imediatamente reconhecido por EUA, URSS e outras potências. Porém, cinco países árabes declararam guerra a Israel e invadiram seu território. A Haganá foi transformada no exército regular de Israel, mas o Irgun continuou com suas ações clandestinas. Em meio à guerra, com Israel sendo atacado de todos os lados, chega o navio “Altalena”, transportando 900 imigrantes e um grande carregamento de armas encomendadas pelo Irgun. O primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, determinou que a carga deveria ser entregue ao exército de Israel, que dela necessitava desesperadamente, mas o líder do Irgun, Menachem Begin, não concordou, pois pretendia manter ações autônomas em relação ao governo de Israel. Na manhã do dia 22, Ben-Gurion reuniu o gabinete e disse: “O que está acontecendo coloca em perigo nosso esforço de guerra e, mais importante ainda, ameaça a existência do país. Um Estado não pode sobreviver sem que o seu exército seja controlado pelo próprio Estado”. Enquanto isso, Menachem Begin falava de um alto-falante no navio: “Povo de Tel Aviv! Nós, do Irgun, trouxemos armas para combater o inimigo, mas o governo está negando o acesso a elas. Ajude-nos a descarregar. Se há diferenças entre nós, vamos resolvê-las depois”. Quando o navio começou a ser descarregado, Ben-Gurion determinou o ataque ao navio. O “Altalena” foi metralhado e pegou fogo, explodindo com a sua preciosa. Mais de cem pessoas morreram. Outras se jogaram ao mar e foram recolhidas por botes, inclusive Begin que, naquela noite, falou através de sua estação de rádio secreta: “Os soldados do Irgun não vão entrar numa guerra fratricida, mas também não vão aceitar a disciplina de Ben-Gurion”. Mas a história demonstrou que a disciplina de Ben-Gurion, que naquele momento representava a soberania do Estado de Israel, acabou prevalecendo, o que foi crucial para a sobrevivência do Estado. Com o tempo, os membros do Irgun deixaram a clandestinidade e o próprio Begin viria a tornar-se primeiro-ministro de Israel, recebendo o prêmio Nobel da paz em 1978 pelo tratado de paz firmado com o Egito.

Para discussão. As invasões do Afeganistão e do Iraque por coalizões lideradas pelos EUA podem ser consideradas violações à soberania daqueles Estados? Os recentes ataques aéreos da OTAN contra forças do governo da Líbia são uma agressão à soberania desse Estado?


Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 31 a 38 e 53 a 56.
Leituras complementares: G. Jellinek, Teoría General del Estado, L. III, cap. 13, item II. H. Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, segunda parte, cap. II. M. Reale, Teoria do Direito e do Estado, cap. IV, itens 92 a 94. L. Ferrajoli, A soberania no mundo moderno. Martin Gilbert, História de Israel, cap. 12.

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