quarta-feira, 30 de março de 2011

Resumo 10 - Elementos do Estado - Povo

II – Do Estado (continuação)

3. Elementos do Estado Moderno (continuação)

3.2. Povo


“Os nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado, para a sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente. O importante é que se criou uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida fosse ameaçado” (Hannah Arendt, Origens do totalitarismo).


Introdução. Povo é o elemento humano do Estado, não podendo haver Estado sem povo. Povo é o conjunto de pessoas que mantêm um vínculo jurídico-político com o Estado. Segundo Kelsen, povo é o âmbito pessoal de validade da ordem jurídica estatal. Trata-se de um conceito jurídico, que não deve ser confundido com população nem com nação.

Não se confundem com povo:

População. Conceito meramente demográfico, população é o conjunto de pessoas que habitam o Estado, independentemente de terem ou não um vínculo com este, incluindo, assim, os estrangeiros e apátridas que apenas residam no Estado.
Nação (Dallari, Cap. III, itens 68 a 71). Conceito político, de fundo cultural e sociológico, nação pode ser definida como “grupo humano no qual os indivíduos se sentem mutuamente unidos, por laços tanto materiais como espirituais, bem como conscientes daquilo que os distingue dos indivíduos componentes de outros grupos nacionais” (Hauriou).
• O conceito de nação foi utilizado para estimular o sentimento popular em favor da unificação do povo quando da formação dos Estados Modernos, por isso também chamados de Estados Nacionais. Mas trata-se de um conceito impreciso, havendo uma grande dificuldade de se saber o que qualifica um grupo humano como nação (“raça”, língua, religião, costumes?).
• Conforme Dallari, baseado em Tönnies, nação é comunidade, diferindo de sociedade porque: é um fato social e não depende de um ato voluntário nem possui uma finalidade determinada por seus membros; não exerce atividades juridicamente organizadas e não tem um poder regulado pelo direito.
• Segundo alguns autores, especialmente os de esquerda, trata-se de um mito romântico, sem base histórica, explorado pela burguesia para alcançar e manter o poder. Para Dallari, nação é uma criação artificial, com forte conotação emocional. Segundo Carl Deutsch, “uma nação é um grupo de pessoas unidas por um erro comum acerca de seus antepassados e um desgosto comum por seus vizinhos”.
• Já para Miguel Reale, a nação é uma realidade histórica, o mais alto grau de integração social. Segundo Del Vecchio, Estados que não correspondem a uma nação são Estados imperfeitos. E Burdeau escreve que, nos primeiros Estados Modernos, a nação fez o Estado, mas nos mais novos o Estado deve fazer a nação.
• No final do século XIX e início do século XX, houve exacerbação e deturpação do nacionalismo, gerando o colonialismo, o racismo e o nazi-fascismo
• Há nações sem Estado (judeus antes de 1948, curdos, tibetanos etc.), Estados sem nação (Vaticano, Brasil em 1822) e Estados com mais de uma nação (antiga URSS, ex-Iugoslávia, etc.). Até mesmo algumas comunidades indígenas são às vezes chamadas de “nações”.
• O fato é que povo não se confunde com nação, e o Estado não precisa de uma nação para existir, mas sim de um povo, não importando se esse povo constitui ou não uma nação.
• Concluindo, para a Ciência Política e a Teoria Geral do Estado, o elemento pessoal do Estado é o povo, e não a população ou a nação, como erroneamente escrevem alguns autores.

O povo na história. Nos Estados Antigos, não havia povo propriamente dito, mas apenas súditos, pois a população era inteiramente submetida aos governantes e não havia direitos políticos. Os grandes impérios podiam abranger vários povos e nações diferentes. Na Grécia, o povo era o conjunto de cidadãos de uma pólis, sendo estes apenas uma minoria que possuía direitos políticos. O mesmo ocorria em Roma. Na Idade Média o conceito era impreciso, pois o poder político estava disperso e muitas vezes superposto. A grande maioria das pessoas não tinha direitos políticos e o poder político era concentrado nas mãos de uma minoria. No Estado Moderno, o poder político é centralizado e unificado, identificando-se precisamente quem era o povo de cada Estado. Com o contratualismo, o povo passa a ser visto como o titular do poder soberano. Sob a influência de autores como Marsílio de Pádua e Rousseau, passa-se de uma noção aristocrática para uma noção democrática de povo, estendendo-se os direitos políticos a camadas cada vez maiores da população.

Conceito jurídico de povo. Segundo Jellinek, povo é o conjunto de pessoas ligadas ao Estado por um vínculo jurídico permanente que lhes confere os direitos públicos subjetivos. O povo, como elemento formador do Estado e a este ligado por um vínculo jurídico, é ao mesmo tempo sujeito e objeto do poder. Sob o aspecto subjetivo, o povo participa do poder do Estado, ou seja, age, é sujeito de direitos. Ao mesmo tempo, sob o aspecto objetivo, o povo está submetido ao poder do Estado, isto é, tem deveres, é súdito.

Direitos públicos subjetivos. Segundo Jellinek, como conseqüência do reconhecimento do vínculo jurídico do povo com o Estado, surgem três tipos de obrigações deste em relação aos seus cidadãos.
Atitudes negativas: estabelecem limites ao poder do Estado em sua relação com os cidadãos; são os direitos individuais, principalmente os vários aspectos da liberdade (liberdade de locomoção, de crença, de expressão etc.)
Atitudes positivas: estabelecem obrigações do Estado para com os cidadãos, como, por exemplo, a obrigação de proteção aos cidadãos, o direito de ação perante o Judiciário e os direitos sociais (saúde, educação, previdência social etc.)
Atitudes de reconhecimento: estabelecem a obrigação do Estado de reconhecer a participação dos cidadãos como seus órgãos, seja agindo em nome dele (diplomatas, chefes de governo), seja contribuindo para a formação da sua vontade, expressa pela lei e pelas decisões políticas (agentes políticos), seja ainda pelo exercício dos direitos políticos (votar e ser votado, participar do Júri, etc.).

Segundo Jellinek, essas obrigações do Estado correspondem a direitos dos cidadãos, que são chamados de direitos públicos subjetivos, porque são direitos subjetivos (próprios dos cidadãos que se enquadram num direito objetivamente previsto) voltados à esfera pública (relação com o Estado). Apenas os membros do povo de um Estado são titulares de direitos públicos subjetivos perante esse Estado.

Nacionalidade e cidadania. Os membros do povo são chamados de nacionais ou cidadãos. Muitos autores (Celso Bastos, José Afonso da Silva etc.) consideram que cidadão é apenas quem possui direitos políticos (votar e ser votado). Assim, todo cidadão é nacional, mas nem todo nacional é cidadão, embora faça parte do povo. Esse entendimento está de acordo com a Constituição brasileira, que chama os brasileiros de nacionais e não define cidadania. Os termos “nacionais” e “nacionalidade”, porém, são incorretos, pois referem-se a nação, que é um conceito impreciso e não regulado pelo direito. Mais correto seria usar o termo cidadania, como faz, por exemplo, a Itália.

Conceito amplo de cidadania. Segundo Jellinek e Dallari, todos os membros do povo (“nacionais”) são também cidadãos. Aqueles que passam a gozar de direitos políticos são cidadãos ativos. Embora minoritária, preferimos esta linha, pois ela não exclui do conceito de cidadania os que estão privados dos direitos políticos (menores de 16 anos, condenados criminalmente, doentes mentais etc.).

Reconhecimento da nacionalidade. Cada Estado define, na sua legislação, os critérios para o reconhecimento ou aquisição da sua nacionalidade (ou cidadania), ou seja, é a lei do Estado que diz quem faz parte do povo. A nacionalidade pode ser primária (originária, desde o nascimento) ou secundária (adquirida posteriormente ao nascimento, por estrangeiro ou apátrida, através da naturalização). Há dois critérios utilizados pelos Estados para o reconhecimento da nacionalidade (ou cidadania): o jus sanguinis (direito do sangue) e o jus soli (direito do solo). Pelo jus sanguinis é nacional o filho de nacional, não importa onde nasça (ex.: Itália, Espanha). Pelo jus soli é nacional aquele que nasce no território do Estado (ex.: Brasil, Argentina). Embora use predominantemente o jus soli, o Brasil também utiliza o jus sanguinis, considerando brasileiro o nascido no exterior, filho de brasileiro(a), desde que seja registrado em repartição diplomática brasileira ou filho de brasileiro(a) a serviço do Brasil. O estrangeiro pode adquirir a nacionalidade brasileira, passando a fazer parte do povo, desde que cumpra os requisitos da Constituição. O brasileiro nato só perde a nacionalidade se assumir outra. O brasileiro naturalizado pode perder a nacionalidade também em outros casos, como a prática de crime.

A lição de Hannah Arendt. Filósofa alemã de origem judia, Hannah Arendt (1906-1975) migrou para os EUA devido à perseguição nazista aos judeus na Europa. Lá lecionou em universidades e publicou vários livros de filosofia e política. Para ela, a política deveria ser a atividade mais nobre do ser humano. Na obra Origens do totalitarismo, observando a situação de cerca 50 milhões de europeus que ficaram desprotegidos porque perderam a cidadania em conseqüência das duas guerras mundiais, e especialmente o caso dos 6 milhões de judeus exterminados nos campos de concentração nazistas, ela chega à conclusão de que a cidadania, ou seja, o pertencimento ao povo de um Estado, é direito básico do ser humano, que ela chamou de “direito a ter direitos”. Sem esse direito básico, a pessoa fica desprotegida e todos os seus demais direitos, até mesmo o direito à vida, ficam ameaçados. Por isso, a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, de 1948, estabelece que ter uma nacionalidade é um dos direitos fundamentais do ser humano.

Para discussão. O brasileiro, filho de italiano, que adquire a cidadania italiana, perde a nacionalidade brasileira ou passa a fazer parte de dois povos? Qual a nacionalidade de um filho de brasileiros que nasce num navio de passageiros de bandeira panamenha navegando no mar territorial argentino?


Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 44 a 47, e Capítulo III, itens 68 a 71.

Leituras complementares: Jellinek, Teoría General del Estado, Livro III, Cap. 13, item II. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, Parte II, Cap. 5.

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