sábado, 31 de março de 2007

Maquiavel não era maquiavélico

O lançamento da tradução brasileira dos Discursos sobre a primeira década de Tito Livio, em que Maquiavel trata da República, demonstra que esse pensador "maldito" foi mal compreendido e teve suas idéias distorcidas por interpretações equivocadas ou maliciosas. Abaixo seguem uma entrevista e um texto sobre o assunto publicados no jornal Folha de S. Paulo de hoje.

Livros

"Maquiavel não era maquiavélico"

Especialista no autor, Newton Bignotto afirma que "leitura parcial" ajudou a forjar o "maquiavelismo" que conhecemos

Para professor, PT não surpreenderia Maquiavel, que escreveu sobre a diferença entre a conquista e a manutenção do poder


A seguir, trechos da entrevista que Newton Bignotto, autor dos livros "Maquiavel" (Jorge Zahar, 2003) e "Maquiavel Republicano" (Loyola, 1991), além de outras obras sobre republicanismo, concedeu à Folha.
(UIRÁ MACHADO)




FOLHA - A idéia de maquiavelismo sempre precede o nome de Maquiavel e sua obra. O sr. considera justo o termo "maquiavélico"?
NEWTON BIGNOTTO - O termo maquiavélico diz respeito à maneira como a obra de Maquiavel foi lida já a partir do século 16. Alguns leitores se chocaram com suas idéias a respeito do funcionamento do poder e a tomaram como uma ameaça para os valores cristãos vigentes. Mas não podemos simplesmente descartar o "maquiavelismo" como uma má interpretação. Mesmo que seja, incorporou-se à história da obra e das polêmicas que gerou. Para compreender Maquiavel é necessário saber por que o chamaram de "maquiavélico".
FOLHA - Como surge o termo?
BIGNOTTO - O "maquiavelismo" nasce de alguma forma com a condenação dos livros do autor ao Index. A partir daí, as leituras desfavoráveis se sucedem. Na Inglaterra, sua má fama é explorada na literatura e no teatro no século 17. Maquiavel é diretamente associado ao diabo na figura do "old Nick". As críticas ajudaram a forjar a visão do maquiavelismo como pensamento do engano, da trapaça. É assim que "maquiavélico" veio fazer parte de quase todas as línguas ocidentais.

FOLHA - O sr. diria que o Maquiavel é maquiavélico?
BIGNOTTO - Da maneira como compreendemos o termo, podemos dizer que não era maquiavélico. Sua conduta não tinha nada de ambígua e sua opção pela república como a melhor forma de governo permaneceu até o fim da vida.

FOLHA - Mas ele nunca foi um defensor da boa-fé na política. Pelo contrário.
BIGNOTTO - O que chamamos de "boa-fé" no mundo privado se converte muito facilmente em ingenuidade no mundo público, e isso é uma das fontes da ruína de muitos governantes. É possível manter a crença em valores, como no caso de Maquiavel com os valores republicanos, sem perder de vista as condições reais que presidem as lutas políticas.

FOLHA - Por que o "Maquiavel republicano" não é tão conhecido?
BIGNOTTO - As leituras negativas, que em geral se inspiram no "Príncipe", nunca levam em conta os "Discursos", obra complexa e densa, que não possui o mesmo caráter direto e provocador da obra mais conhecida. Com isso, sobreviveu para o grande público uma visão parcial e redutora da filosofia de Maquiavel.

FOLHA - Podemos dizer, então, que ele foi injustiçado?
NEWTON BIGNOTTO - Não sei se injustiçado, mas certamente compreendido de forma parcial. A visão da leitura do conjunto de seus escritos é muito diferente daquela propagada pelo maquiavelismo vulgar. Um olhar do conjunto da obra de Maquiavel permite compreender melhor a profunda transformação que seu pensamento produziu na filosofia política ocidental.
De forma criativa, ele atacou ao mesmo tempo a tradição cristã e o humanismo que o precedeu e se serviu dos escritores da Antigüidade para estabelecer parâmetros novos à política. Ele procurou desvendar os meandros de seu tempo e o que ele continha de universal.

FOLHA - Como se relacionam "O Príncipe" e os "Discursos"?
BIGNOTTO - Os pressupostos teóricos são os mesmos, mas os objetos, não. Ambas partem da idéia de que todo estudo do mundo político deve se basear numa análise das coisas tal como elas são em sua "verdade efetiva", e não na maneira como gostaríamos que elas fossem num mundo ideal.

FOLHA - No ano passado, o ator Paulo Betti disse que não é possível fazer política sem colocar a mão na merda. Esse é um tipo de realismo típico de Maquiavel?
BIGNOTTO - A busca pela "verdade efetiva das coisas" é antes de mais nada uma atitude analítica, que nos ensina a compreender corretamente o objeto que chamamos de "política" e suas determinações. Ela nos ensina a evitar a abordagem do mundo público apenas a partir de ideais, que não podem ser realizados e que acabam gerando frustrações. Mas Maquiavel não diz que a vida política é sempre um fruto podre. Ao contrário, em certas ocasiões, é possível produzir grandes obras, agir de maneira arguta e eficaz, com "virtù", e isso sim caracteriza os grandes atores políticos, não o simples mergulho nas disputas cotidianas, que povoam e muitas vezes empobrecem a cena política.

FOLHA - Muitos consideram que Lula e o PT, quando chegaram ao poder, mudaram a forma de agir. Maquiavel teria sido iludido?
BIGNOTTO - O PT certamente mudou. Acho, entretanto, que Maquiavel não teria se iludido, pois um dos grandes temas do "Príncipe" é justamente o da diferença entre a conquista do poder e o de sua manutenção. Nesse sentido, todo aquele que chega ao poder tem de mudar algo se pretende mantê-lo.



--------------------------------------------------------------------------------
DISCURSOS SOBRE A PRIMEIRA DÉCADA DE TITO LÍVIO
Autor: Nicolau Maquiavel
Lançamento: Martins Fontes
Preço: (R$ 58; 514 págs.)
---------------------------------------------------------------------------------

Pensador nunca disse sua frase mais famosa

Diferentemente do que tem sido registrado ao longo dos séculos, Maquiavel jamais escreveu aquela que se tornaria a frase mais famosa de toda a sua filosofia: "Os fins justificam os meios".
Se é verdade que uma aproximação dessa idéia está presente em boa parte de "O Príncipe", é nos "Discursos" que Maquiavel chega mais perto de enunciar a máxima.
No capítulo nove do primeiro livro, afirma: "Cumpre que, se o fato o acusa, o efeito o escuse". E continua, dizendo que, "quando o efeito for bom, como o de Rômulo, sempre o escusará".
No contexto, Maquiavel diz ser necessário estar sozinho para fundar uma república. Assim, considera que, na hoje lendária fundação de Roma, Rômulo agiu corretamente ao matar seu irmão Remo para fundar a cidade.
Há uma diferença entre essa idéia e a "máxima de Maquiavel". Nesta, a justificativa dos meios se dá apenas em relação aos fins que se pretende alcançar.
Na argumentação dos "Discursos", duas condições são impostas: que a intenção seja em favor do bem comum e que os efeitos se mostrem positivos. Portanto, a justificação nunca poderia se dar antes da ação -nem mesmo antes de saber se os resultados foram de fato bons. (UM)

Nenhum comentário: