sexta-feira, 23 de março de 2007

"Amigos" dos animais querem matar filhote de urso

Ativistas dos direitos dos animais preferem ver morto um filhote de urso polar abandonado pela mãe e criados por tratadores no zoológico de Berlim. O jornalista Reinaldo Azevedo comenta essa atitude e, de quebra, dá uma brilhante aula sobre o idealismo platônico e o perigo que ele representa quando abraçado por radicais. Vale a pena freqüentar o blog desse jornalista, um dos mais ácidos críticos do (des)governo Lulla e do petismo e outros radicalismos.

Você é um homem ou é um urso branco?

Na aparência banal de certas ocorrências, no recorte, temos, muitas vezes, a manifestação de um sintoma. Confrontados com o aparentemente tolo, banal, deixamos passar, com freqüência, o que é sinal de uma época. Antes que eu me inteirasse do assunto, leitores enviaram comentários ao blog sobre ativistas alemães que exigem que um filhote de urso branco seja sacrificado. Nota: eles pertencem a entidades defensoras dos animais. Knut é o nome do bichinho. Ele nasceu no zoológico de Berlim e foi abandonado pela mãe. Publiquei os comentários, não sem antes dizer cá pra mim: “Esses meus leitores têm cada uma...”

Pois é. Meus leitores são a minha salvação. À medida que me inteirava do assunto, confesso que tinha até receio de ler a razão dos tais “militantes”. E era justamente aquela que eu temia: segundo esses sábios, o ursinho, criado em cativeiro, não pode mais ser considerado um urso, já que ele acredita (!) que os tratadores é que são seus pais. Assim, que seja sacrificado — já que eles estão lá para defender, como posso me expressar?, “ursos ursos”, e não “ursos humanizados” pelo nosso amor doméstico.

A primeira implicação é filosófica — também de filosofia da linguagem. Talvez seja necessário recuperar categorias do platonismo e do neoplatonismo para que se chegue a uma definição mais precisa: “Mas, afinal, o que torna urso um urso?” Serão as quatro patas? Não só. No caso, a pelagem branca (é um ursinho polar)? Não só. Os hábitos de urso? Um urso que nascesse sem uma das patas dianteiras continuaria urso para além dessa imperfeição?

Entendi: há um urso na cabeça desses militantes, o urso ideal, o “urso-como-idéia”, de que o urso real, este que conhecemos, é uma sombra. Se ele nega uma característica, que eles consideram essencial, dadas suas teses sobre o urso, não pensam nada mais razoável do que a solução final: mate-se aquela coisa, que, na sua imperfeição, conspurca o seu “mundo como idéia”. A propósito não de ursos, mas do Mundo Como Idéia, leia um dia livro com esse mesmo título do grande poeta Bruno Tolentino.

Incrível que esse idealismo assassino de ursos mate também pessoas. Lembram-se de Terry Schiavo, a americana que levava uma vida dita vegetativa? Acharam que ela não era um urso digno de continuar vivo. Seu ex-marido, já em segundas núpcias (a sua “chaga” foi bem outra...), entrou na Justiça para que fosse desligado o aparelho que a alimentava. Tinha ainda a responsabilidade legal sobre Terry. Os pais da moça a queriam. Dispensavam o ex-marido (e seu direito legal) de quaisquer cuidados. Católica, a família se opunha a que o aparelho fosse desligado, o que acabou acontecendo. Ela demorou 13 dias para morrer. Seca como as flores de um cemitério.

À época, perguntei por que eles não podiam, então, cultivar seu “vegetal”, assim como quem rega gerânios à janela. Ah, não podia porque os cultores do “mundo como idéia” tinham conceitos muito definidos do que é uma vida. Gente não é gerânio. Vida, para eles, é aquela idealmente estabelecida. Alguns saíram às ruas com cartazes pedindo o desligamento do aparelho. Que gente era aquela que se mobilizava em favor da morte de “vegetais” com nome, sobrenome e história? Que gente é essa que se mobiliza para matar um urso branco?

Os platônicos acreditavam que se pudesse chegar a algumas idéias puras. Estes de hoje forjam a sua pureza de um consenso que é histórica e socialmente determinado. E, como tal, claro, sujeito a controvérsias. O diabo é que não aceitam a contradição; temem o dissenso; acusam-no de reacionário. Rejeitam, no fundo, as imperfeições e as precariedades da vida em nome do reconhecimento das identidades puras. Um urso tem de reproduzir as características todas “daquele” urso; uma vida humana tem de apresentar as características todas “daquela” vida humana. Nada aceitam além do que consideram ser a “verdade integral”.

Há dias, militantes homossexuais foram presos nos Estados Unidos. Protestavam, com agressividade, contra a política vigente nas Forças Armadas do país conhecida por “don’t ask, don’t tell”, algo como: “Não pergunte; não conte”. Vale dizer: homens e mulheres não são obrigados a revelar a sua condição sexual ao comando, que também está proibido de perguntar. Nada disso! Urso é urso. Vida é vida. Gay é gay. Preto é preto. Mulher é mulher. É preciso dizer, deixar claro, eliminar todas as zonas de ambigüidade, estabelecendo, assim, todas as diferenças, de maneira que cada coisa seja exercida na sua pureza absoluta, reivindicando seus “direitos”. Se possível, é preciso ter uma lei específica que a proteja, vejam só, do risco da universalidade.

Madame Roland, pouco antes de perder a cabeça na guilhotina jacobina, teria dito: “Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!” Duvido um pouco que tenha tido espírito para tanto em hora tão difícil. Mas o achado é bom. Não é por acaso que a Revolução Francesa é considerada um símbolo da revolta contra a tirania — e, a meu juízo, matriz das tiranias modernas. Ela leva para a teoria e para o pensamento a certeza de que as reformas são impossíveis; de que o mundo só se move pelo confronto e pela ruptura. O corolário óbvio é o de que o “outro” tem de ser eliminado porque ele me impede — como classe ou grupo — de ser plenamente o que sou.

A política, é certo, foi ganhando domínios novos nestes tempos. E foi, de certo modo, despolitizando a política propriamente dita — as disputas pelo poder — para politizar outros campos da experiência. À medida que aquele sonho de ruptura foi-se mostrando impossível, a militância foi-se deslocando para o feminismo, as identidades sexuais, a ecologia, a proteção aos animais, o “direito” de morrer e até o “direito” de matar...

Não aceitamos mais os homens impuros, imperfeitos, pecadores, indecisos, precários — estes a quem o papa vive aplicando puxões de orelha (quem ele pensa que é?). Cada um tem de dizer e ser o que é de forma absoluta, plena, total, inquestionável. Como um urso branco saído de alguma ilustração.

http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/

Um comentário:

Anônimo disse...

Lembrando da questão das cotas raciais... O que é um negro? É a cor da pele? A descendência? Quanta pigmentação deve haver para poder desfrutar de sua cota? É o fim da picada. Continuo achando que em grande parte o preconceito é contra o pobre, seja lá de que cor... É a esse que devemos buscar a inclusão. Esse é mais fácil de identificar. Abaixo o radicalismo!